(Este texto é parte integrante do livro Pai de Menina²: Como Sobreviver com Duas Filhas, de Eduardo Buzzinari)
A Belinha vivia dizendo
que não tinha tempo para nada. Também pudera. Desde que a Michele nasceu, as
duas não haviam passado nem cinco minutos longe uma da outra. Era um grude só!
Fosse na cama, na cozinha ou no banheiro, as duas estavam sempre juntas. Onde a
Michele ia, lá estava a Belinha atrás. E a zelosa mamãe fazia questão de cuidar
da filha sozinha, quando muito, com a ajuda do marido. Era ela quem fazia a
comida, dava o banho, trocava a fralda, preparava a mamadeira e colocava a
menina para dormir. Se fosse um jogador de futebol, seria daqueles que cobra o
escanteio e corre na grande área para cabecear a bola. Ao fim do dia, como era
de se prever, ela dizia “estou morta,
hoje não tive tempo de fazer nada para mim” – verdadeiramente exausta, mas
com uma pontinha de orgulho.
Até que chegou o dia da
Michele ir para a escolinha.
Belinha acordou mais cedo
que o habitual, preparou o almoço com uma hora de antecedência, pôs o material
na mochilinha, arrumou a merendeira e penteou um lindo rabo de cavalo no cabelo
da menina. Ao meio dia, o portão do colégio separou mãe e filha pela primeira
vez na vida.
Horas depois, o marido
encontra a esposa sentada na mesa da cozinha, de frente para o relógio de
parede.
- Que cara é essa,
Belinha?
- Nada, tô só vendo o
tempo passar.
- Hum... E a Michele?
Ficou bem na escolinha?
- Melhor até que eu
imaginava.
- Que bom! Primeiro dia de
aula é um barato, né?
- Pra ser sincera, nunca
vi muita graça nisso.
- Ah, qual é? Me lembro, como se fosse hoje, daquele
cheirinho de massa de modelar misturado com giz de cera. E a turma toda só
esperando o portão abrir para correr até as salas...
- Pois eu sempre detestei
esse cheiro.
- Não é possível! E o cheirinho
de papel de mimeógrafo?
- Nem me lembro.
- Como não?
- Vai ver não era da minha
época.
- Ih, já vi que tá
mal-humorada...
- Impressão sua.
- Ah, saquei! É por causa
da Michele... Tá com saudades da nossa filhota, né?
- Tô só aqui pensando se
ela ainda não é muito nova para ir à escola. Acho que nos precipitamos...
- Mas é claro que não. Tá
na hora dela começar a conviver com
outras pessoas.
- Pra quê outras pessoas
se ela já tem a mim?
- Ora, Belinha... Ela
precisa interagir com outras crianças. Gente da idade dela.
- Ai, nem me fala nisso.
Imagine só a quantidade de germes e bactérias que não deve ter nessas outras
crianças... Já tou até vendo... Num dia ela vai me aparecer com piolho, noutro
com catapora... Logo ela que nem resfriado nunca teve...
- Não se preocupe, ela vai
sobreviver.
- E se ela tiver vontade
de ir ao banheiro?
- Que que tem?
- A turma deve ter uns
trinta alunos... Será que a professora vai conseguir dar atenção a todos?
- Fica tranquila, ela dá
um jeito.
- Em todo caso, acho que não
custa eu ir até lá e ver se ela tá precisando de uma ajuda. Quem sabe...
- Que exagero, Belinha!
- Você acha?
- Claro! Não vá fazer a
garota pagar esse mico... Olhe, pense no lado positivo: agora você finalmente
vai poder tirar um tempinho para si mesma, pode fazer aquele curso de
fotografia que sempre quis...
- Não quero mais.
- E que tal voltar ao pilates? Você vivia reclamando que não
tinha tempo para malhar...
- Perdi a vontade.
- Pode ler um livro,
assistir a um filme, criar uma ONG em defesa do jacaré-açu da Amazônia...
- Tá me chamando de
desocupada?
- Não é isso, Belinha...
Só tou querendo ajudar.
- Pois muito ajuda quem
não atrapalha.
- Ah, é assim? Então fica
aí curtindo sua depressão e devorando um chocolate após o outro até dar a hora
da saída. Eu desisto.
- Falando em hora da
saída, acho que já vou indo pro portão do colégio. Afinal, falta só uma hora e
meia para terminar a aula...
- Você é quem sabe. Mas é
bom ir se acostumando à nova rotina, porque amanhã tem mais.
- Amanhã? P-precisa voltar
amanhã?
Nota do autor: na
concepção original deste texto, era a filha quem fazia essa pergunta à mãe após
um exaustivo primeiro dia de aula. Mas circunstâncias externas,
surpreendentemente mais próximas da realidade, fizeram-me mudar o foco da
narrativa...